Uma brasileira com menos de 15 anos tem mais risco de morrer no parto que uma mulher adulta. Já seu bebê corre duas vezes mais risco de morrer no momento do nascimento que o restante das crianças. Os dados foram obtidos pelo UOL a partir de levantamentos realizados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade, no Ministério da Saúde
Nesta semana, a Câmara dos Deputados aprovou, em votação relâmpago, a urgência do projeto de lei 1904, o PL antiaborto. Ele equipara a punição por abortos realizados após 22 semanas de gestação em casos de estupro à pena por homicídio. Gestantes e médicos seriam punidos, com penas eventualmente superiores às de um estuprador, por exemplo
Com a aprovação da urgência, a proposta pode ser analisada no plenário a qualquer momento, sem necessidade de passar pelas comissões temáticas. O autor da proposta, o deputado Sóstenes Cavalcante (PI-RJ), tem como objetivo alterar o Código Penal, que afirma desde 1940 que o aborto não é punido em casos de estupro e risco à vida da mãe. Para médicos e especialistas, a lei teria forte impacto sobre as meninas das camadas mais vulneráveis da sociedade.
De uma forma geral, os dados revelam que o risco de morte de meninas e de seus bebês é muito superior às taxas de mortalidade materna e neonatal entre as mulheres em idade adulta. O levantamento coloca em questão a tese de que, ao não se realizar um aborto, vidas sempre estariam sendo salvas.
De uma forma geral no Brasil, os dados de 2022 revelam que, para cada mil bebês nascidos vivos, existem 8,5 mortes. Mas, no caso da gravidez de meninas de menos de 15 anos, a taxa de mortalidade é duas vezes maior. Em 2022, para cada mil nascidos, 16,4 morriam quando a mãe tinha menos de 15 anos de idade. Foram 235 óbitos no ano. Na faixa etária de jovens grávidas entre 15 e 19 anos, foram 2,9 mil bebês que não sobreviveram ao parto. Risco maior também para a mãe.
O aumento do risco também é registrado para a mãe. Em 2022, a taxa de mortalidade materna de meninas menores de 15 anos foi de 84 para cada 100 mil. No total, 12 meninas morreram no Brasil numa mesa de parto.
Nos últimos dez anos, o sistema registrou 130 crianças que morreram ao parir. O que os técnicos constatam ainda é que a taxa de mortalidade entre as meninas é muito superior às médias da mortalidade materna, contabilizando todas as idades. Entre 2013 e 2022, a taxa ficou entre 58 e 53 mortes para cada 100 mil mulheres, inferior à incidência de mortes entre as meninas de até 15 anos. Em termos absolutos, 1,3 mil mulheres brasileiras morreram no parto em 2022
ONU cobra do Brasil medidas para reduzir morte materna. O debate sobre o projeto no Brasil ocorre justamente num momento em que a ONU cobra do país a descriminalização do aborto e seu acesso seguro, além de uma redução das taxas de mortes maternas.
Alertando sobre o avanço do que chamou de “fundamentalismo religioso” no Brasil, o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) submeteu ao governo federal as seguintes recomendações.
Legalize o aborto e descriminalize-o em todos os casos e garanta que mulheres e meninas tenham acesso adequado a serviços de aborto seguro e pós-aborto para assegurar a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia econômica e corporal para fazer escolhas livres sobre seus direitos reprodutivos;
Reforce as medidas para combater a taxa alarmante de mortalidade materna, inclusive melhorando o acesso a cuidados pré-natais e pós-natais e a serviços obstétricos de emergência prestados por parteiras qualificadas em todo o território do Estado Parte, e aborde suas causas fundamentais, como complicações obstétricas, gravidez precoce e abortos inseguros.
Mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães em 2023 no Brasil, num espelho da dimensão da violência contra meninas no país. Ainda que o número represente uma queda significativa em comparação aos dados de 2014, a situação no Brasil é classificada como uma “epidemia” por entidades.
Os dados obtidos com exclusividade pelo UOL são do governo federal, que, no mês passado, foi alvo de uma sabatina no Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).
A perita Hilary Gbedemah questionou o governo, por exemplo, sobre como tem sido a resposta das autoridades diante da pressão “conservadora” contra a implementação de educação sexual nas escolas. Segundo ela, a taxa de gravidez de meninas – principalmente negras – é “inaceitável e às vezes criminalizada”
A perita Natasha Stott Despoja também soou o alerta sobre a incapacidade do Estado brasileiro de garantir o aborto legal e apontou que o país está entre os locais onde o acesso é mais restrito. Se o novo projeto for aprovado, a lei brasileira será tão dura quanto a de países como Afeganistão e Indonésia, mostrou a Folha de S.Paulo.
Durante a sessão, Despoja questionou o governo sobre o que tem sido pensado para assegurar esse direito, Casos emblemáticos de crianças que foram estupradas e tiveram dificuldades em ter acesso aos serviço de aborto legal — em São Paulo, no Piauí e em Santa Catarina — foram apresentados pela sociedade civil aos peritos da ONU.
O aborto legal é permitido pela lei brasileira e deve ser oferecido gratuitamente pelo SUS. O aborto no país não é considerado crime quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, quando a gravidez é resultante de estupro e quando o feto é anencéfalo.
Os serviços, porém, não têm sido garantidos, o que afeta principalmente as mulheres com baixa renda, segundo documentos recebidos pelo Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)
Reportagem: Jamil Chade – Colunista do UOL
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